Vera Ramos

Acadêmica e Presidente em Exercício do IHG-DF

Cadeira nº 34 – Patrono: Ernesto Ule

Foi um desafio sem precedentes construir Brasília e é um desafio permanente protegê-la. Para vencermos esse desafio, é imprescindível sermos, no mínimo, corajosos e competentes como nossos ilustres pioneiros.

Brasília representa um marco na história do Brasil e na história do urbanismo e da arquitetura internacionais. Introduziu um novo modo de viver numa nova concepção de cidade.O plano urbanístico de Lúcio Costa representa um salto qualitativo sob diversos aspectos. A construção de nossa moderna capital – cidade – parque foi marcada também pelas novas técnicas construtivas utilizadas e pelos planos revolucionários nas áreas de educação, saúde e abastecimento.

Além de inovador, seu urbanismo traduz uma referência ética: o princípio da supremacia do interesse público sobre os interesses individuais, que é representado pela predominância das generosas áreas verdes e livres sobre os espaços privados e edificados. Portanto, as áreas verdes fazem parte do plano urbanístico, têm função ambiental e de lazer e nos ensinam a valorizar o que é público, isto é, de todos nós e das futuras gerações.

No Brasil e no mundo, o urbanismo busca unir cidade e natureza. Em Brasília isso acontece. No Brasil e no mundo, os habitantes de metrópoles almejam melhor qualidade de vida. Brasília pode proporcionar isso: recursos de cidade grande e qualidade de vida de cidade pequena.

E as inovações não pararam por aí: o Conjunto Urbanístico, Arquitetônico e Paisagístico de Brasília foi o primeiro bem contemporâneo reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade, em 1987, pois até aquele momento somente bens culturais seculares ingressavam na lista. Outra inovação: Brasília é a única cidade do século XX tombada pelo IPHAN. E mais: está protegida por um tombamento de caráter urbanístico, diferente e mais flexível do que o tombamento arquitetônico usual. A área sob proteção abrange 112,25 km², a mais extensa do mundo enquanto sítio urbano tombado.

De acordo com a UNESCO, Brasília é exemplo de concepção urbana materializada no século 20, expressando princípios do movimento moderno, por meio de sua concepção urbanística e arquitetônica de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, em uma escala urbana de cidade. A experiência brasileira é digna de nota devido à magnitude da ação, que não apenas concluiu um processo histórico, mas também pela natureza excepcional do desafio assumido em sua construção e pela dimensão do projeto político, social, intelectual e territorial que ela transmitiu.

Como bem cultural, o Conjunto Urbanístico, Arquitetônico e Paisagístico de Brasília está protegido em três instâncias de poder: distrital, federal e mundial, por meio de legislações de caráter geral e específico, com destaque para:

 

A forma de proteção pelo tombamento é inédita, mediante as escalas urbanas configuradas na cidade: escalas monumental, residencial, gregária e bucólica. E o que são escalas urbanas? O termo escala é utilizado pelos arquitetos para estabelecer ordens de grandeza entre as coisas. As escalas urbanas são determinadas pelas relações de tamanho entre as pessoas e as edificações, assim como pelas relações de proporção entre as áreas construídas e os espaços vazios e entre as próprias massas construídas. Algumas edificações, como as obras de Oscar Niemeyer e outras, são protegidas também pelo tombamento arquitetônico.

Brasília é luz, céu, horizonte, asas, espaços abertos, áreas verdes, eixos, vias, tesourinhas, superquadras, entrequadras, blocos, pilotis epalácios. Essas características constituem a identidade da cidade e devem ser preservadas, bem como os conceitos e valores relacionados.

            Entretanto, apesar do reconhecimento de valor nos níveis nacional e mundial, égrande a falta de informação de brasilienses e brasileiros sobre a concepção urbanística de Brasília. Tanto com relação à sociedade em geral quanto no âmbito da administração pública e dos poderes legislativo e judiciário. Some-se a isso a falta de uma decisão convicta, uma verdadeira opção por preservar.

              Nesse cenário, as pressões econômicas e sociais se intensificam, ameaçando e comprometendo a autenticidade e integridade do Conjunto Urbanístico, Arquitetônico e Paisagístico de Brasília.Propostas equivocadas e nocivas se sucedem com incrível rapidez, descaracterizandoa cidade a cada dia.A excessiva concentração de empregos e serviços e a ineficiência dos meios de transporte coletivo, dentre outros fatores, dão origem a inúmeras agressões aonosso patrimônio e exigem soluções emergenciais.

É preciso lembrar queo plano urbanístico de Lúcio Costa não se encontra totalmente implementado, o que reduz os benefícios que poderia proporcionar a seus habitantes e usuários. Em todos esses anos, por exemplo, o centro urbano e as unidades de vizinhança não chegaram a ser consolidados conforme previsto, provocando sérias distorções no plano urbanístico.

Ocentro urbano é constituído pela Plataforma Rodoviáriae os setores situados no entorno do cruzamento dos Eixos Monumental e Rodoviário, que compõem a escala gregária: são os setores comerciais, bancários, de autarquias, hoteleiros, de rádio e televisão, médico-hospitalares e os dois setores de diversões. De acordo com o plano urbanístico, esse deve ser o espaço urbano mais densamente utilizado e propício ao encontro, destinado ao trabalho e às diversões coletivas, onde podem ocorrer diversas atividades.  Entretanto, esses setores não vêm sendo utilizados integralmente como previsto e à noite se transformam em locais desertos e perigosos. Enquanto isso, grandes bares, restaurantes e outros estabelecimentos de maior porte se concentram indevidamente nos comércios locais causando transtornos às áreas residenciais.

A unidade de vizinhança, ou área de vizinhança, é a estrutura urbana formada pelo conjunto de quatro superquadras e suas entrequadras destinadas ao uso comunitário, com atividades educacionais, culturais, religiosas, desportivas, de lazer, de administração pública e, ainda, aos comércios locais. Integra a escala residencial e visaa estabelecer, no entorno imediato das superquadras, com acesso a pé pelo morador, os demais tipos de usos que atendem ao uso residencial. Como sabemos, a primeira e única unidade de Vizinhança integralmente construída em Brasília é formada pelas Superquadras Sul – SQS 107, 108, 307 e 308 e foi concluída quando da inauguração da cidade. As demais áreas de vizinhança incompletas comprometem em muito o novo modo de viverproporcionado pelas superquadras e a qualidade de vida dos moradores.A inexistência daquelas atividades junto à residência faz com que o carro seja utilizado, aumentando o número de veículos no trânsito e agravando a falta de estacionamentos.

Entretanto, apesar dos inúmeros problemas, a qualidade de vida que a cidade ainda oferece é reconhecida por todos. Isso se dá, principalmente, em decorrência dos excelentes atributos de seu urbanismo e da proteção pelo tombamento. Mas a população não está ciente dos fatores que precisam ser preservados para que essa qualidade de vida não se deteriore irreversivelmente. Em contrapartida,inexistem ações oficiais de educação patrimonial. Assim, não se pode protelar mais a implementação de ações eficazes e sistemáticas de promoção do patrimônio, iniciando-se pela obrigatoriedade da educação patrimonial nas escolas.

Por meio da informação, todos compreenderão a lógica do urbanismo de Brasília e algunsmitos serão derrubados como, por exemplo, que o tombamento é um problema e que engessa a cidade.O tombamento de Brasília não impede o desenvolvimento qualitativo e, sim, o crescimento quantitativo.O desenvolvimento urbano qualitativo e a preservação do patrimônio cultural são perfeitamente possíveis e compatíveis, se houver vontade política, visão, sensibilidade, conhecimento e, sobretudo, reconhecimento pelo que Brasília representa.O planejamento urbano pode e deve ser utilizado como um instrumento de proteção, estabelecendo formas de preservação do patrimônio de acordo com os princípios ditados pela legislação de proteção.

A preservação de um patrimônio contemporâneo e inédito como Brasília é ainda mais desafiadora. Brasília é uma cidade diferente e não pode ser tratada como uma cidade tradicional. Não basta querer preservar, é preciso saber como preservar. É imprescindível dotar o Distrito Federal de instrumentos jurídicos e institucionais que assegurem a proteção de seu patrimônio cultural.

Como Estado-Parte, o Governo Brasileiro deve honrar os compromissos assumidos junto à Convenção do Patrimônio Mundial da UNESCO, cumprindo e fazendo cumprir o disposto nas legislações de proteção do Conjunto Urbanístico, Arquitetônico e Paisagístico de Brasília.

Porém, para a efetiva proteção desse patrimônio nacional e mundial é preciso, acima de tudo, sensibilizar e conscientizar a sociedade sobre a importância da preservação, pois só quem conhece e entende, dá valor, respeita e protege.

Nesse sentido, o Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal vem, com muito orgulho, fazendo a sua parte. Com a divulgação da história e da geografia e ações de educação patrimonial, estamos contribuindo para preservarBrasília e sua memória.

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