Acadêmico José Theodoro Mascarenhas Menck

Aí está uma personagem que entrou na História, tanto na nossa como na Portuguesa, com o nome “errado”.
Em todos os compêndios escolares, bem como em todas as monografias que tratam do primeiro contato dos portugueses com os aborígenes brasileiros, evento ocorrido nas paradisíacas praias bahianas, aquele que rezou as duas primeiras missas sobre o céu da nova terra (a Carta de Pero Vaz de Caminha se refere a duas missas) aparece sob o nome de “frei Henrique de Coimbra”.
Em alguns poucos sítios e blogs da internet podemos ler frei Henrique Soares de Coimbra. Ou seja, com o indefectível – “de Coimbra” – a lhe seguir o nome.
O inusitado é que, em vida, o citado frei nunca respondeu a esse nome. Coimbra foi apenas a terra do seu berço natal.
Também não deixa de ser curioso, que tal “erro” tenha atravessado cinco séculos da história de Portugal e do Brasil, ainda que, desde 1866, já se saiba o nome eclesiástico daquele que os historiadores pátrios insistem em cognominar como sendo: Henrique de Coimbra.
Seu real sobrenome somente veio a luz quando da publicação das Lendas das Índias de Gaspar Corrêa, livro que por mais de três séculos e meio ficou perdido em meio a empoeiradas prateleiras de bibliotecas e arquivos.
Lá está a descrição da partida festiva da grande frota de Cabral, lá está, por inteiro, o nome do frade histórico – Frei Anrique Soares.
O apêndice “de Coimbra” não existe. Os escritores tomaram-lhe a cidade de nascimento pelo seu verdadeiro nome.
Como realçou Viriato Corrêa, o erro é fácil de explicar-se. Os frades fazendo-se vulgarmente conhecer apenas pelo nome de batismo – frei Pedro, frei Antônio, frei José, fazem com que seus apelidos de família se percam, principalmente em uma época em que não havia os documentos de identificação hoje tão vulgares.
Os primeiros historiadores não dão ao oficiante da primeira missa do Brasil senão o seu nome inicial – Henrique. Os que vieram depois, sabendo-o nascido na cidade situada à beira do rio Mondego, aplicaram-lhe o – “de Coimbra” – para o distinguir de seus homônimos. Estabeleceu-se, posteriormente, a confusão e, durante três séculos e meio, ficou consagrado o erro.
Hoje, porém, sabe-se, que o frade que rezou a primeira missa na terra de Santa Cruz respondia por “frei Henrique Soares” e não “ frei Henrique de Coimbra”. Isso quanto ao nome religioso, porque, quanto ao secular, até hoje não se sabe como se chamava o capelão da armada de Cabral na vida mundana, antes de pôr aos ombros o hábito de São Francisco.
Podemos conhecer alguns elementos da vida de Frei Henrique Soares lendo a História Seráfica, da lavra do Frei Fernando da Soledade. Crônica escrita no século XVIII, e na qual o frade aparece com o conhecido nome: “frei Henrique de Coimbra”.
Frei Henrique só se fez monge depois de homem maduro. Antes disso, era magistrado; tendo alcançado ao mais alto posto na magistratura. Era desembargador da Casa da Suplicação de Lisboa, o mais alto tribunal do sistema judiciário português no antigo regime.
Não se conhece as razões que levaram nossa personagem a trocar a toga de um magistrado proeminente pelo burel humilde de um franciscano. Certo é que, um dia, foi bater à porta do convento dos franciscanos, na vila de Alenquer, para lá professar seus votos.
A sorte, que o guiou como magistrado, foi-lhe ao encalço, portas a dentro do claustro. Em poucos dias, era Frei Henrique uma das figuras predominantes da ordem. Haver entrado no claustro não o fez perder seus contatos no mundo. Frei Henrique não perdeu a proeminência que gozava junto à corte de D. Manuel, o Venturoso monarca dos grandes descobrimentos. Segundo consta, o afortunado rei, quando tinha algum negócio de “particular ponderação”, mandava-o chamar ao claustro.
E foi por muito confiar no talento e nas virtudes do antigo desembargador da Casa da Suplicação que El Rey D. Manuel lhe deu a incumbência de ir à Índia na Frota de Cabral, como prelado e superior a todos os frades “assim nos méritos, como na autoridade da pessoa”, como nos diz frei Fernando da Soledade, na sua História Seráfica.
Na cerimônia das primeiras missas brasileiras, não foi o burel de Frei Henrique o único que se agitou na brisa marinha de nossas praias. A frota transportava oito frades franciscanos.
Fernando da Soledade nos transmitiu seus nomes:
Frei Gaspar, frei Francisco da Cruz, frei Simão de Guimarães e frei Luiz do Salvador: “todos quatro Pregadores, & excelentes Letrados”;
Frei Maffeo: “Sacerdote, Organista & Musico, que também com estas prendas podia ser parte na conversão das almas, havendo experiência certa de que o demonio também se afugenta com as suavidades das harmonias”;
Frei Pedro Neto: “Corista de Ordens sacras”; e
Frei João da Vittória: “Frade leygo, & do numero daqueles idiotas, em cuja boca imprime o Senhor dos humildes o que hão de responder na presença dos tyrannos; muytos dos quaes, padecendo martyrio”.
A não ser o episódio das primeiras missas, bem como os sermões que pronunciou na ocasião, frei Henrique não tem mais nenhum outro papel na nossa história. Contam, no entanto, as crônicas que se familiarizou de tal maneira com os nossos aborígenes que pediu a Cabral que lhe deixasse em terra, em companhia de alguns dos seus dirigidos. O Almirante não lhe satisfaz o desejo, uma vez que alegou serem estritas as ordens régias para que todos seguissem para as Índias. Teve de continuar a viagem.
É lá, nas Índias Orientais, que o papel de frei Henrique avulta. A sua ação de catequista começa no porto africano de Melinde, entre os negros.
É infeliz.
Não consegue impressionar.
Apenas desperta irritação e ódios.
Os gentios querem-no liquidar traiçoeiramente. Mas a notícia da trama assassina chega a Cabral, que evita à força armada.
Em Angediva, já na Índia, o frade é mais feliz. Em poucos dias, consegue batizar vinte e três indígenas rapidamente catequizados.
No entanto foi em Calicute que o esperaram grandes sucessos, bem como enormes dissabores. Os primeiros dias são risonhos. Os missionários portugueses conseguem conversões numerosas e inesperadas. Uma delas é a de um “jogue”, figura local de anacoreta, sábio, vidente, de formidável ascendência sobre os povos das costas de Malabar. Essa conversão é a nota sensacional da catequese. Seguindo o “Jogue” vêem os “Nayres”, os nobres após o que segue imensa multidão de conversos.
Mas os negociantes maometanos, a quem a sua súbita mudança religiosa de parte da população prejudicava seus negócios, conspiram, e acabam por deflagrar uma revolta. A carnificina foi brutal. Três dos frades foram esquartejados. Mortos a fio da espada. Frei Henrique e seus outros quatro companheiros sobreviventes, feridos, iriam ter a mesma sorte que os primeiros quando Cabral surge com as suas tropas. Inicia-se o combate. Os gentios, derrotados, fogem em debandada. Mais mortos do que vivos são os franciscanos transportados para a bordo da nau capitânia. Curam-se. Meses depois, lá estão, muito além, em Cochim, com frei Henrique a frente, familiarizado com os indígenas, pregando.
É aí que as virtudes cristãs do oficiante da nossa primeira missa mais se inflamam de ardor e abnegação. Entende que não deve dar o exemplo da pobreza evangélica e não ser pesado aos cofres da amada. Assim sendo, todos os dias, com os companheiros, sai a esmolar pelas ruas. O que sobra ao essencial para o dia, vai ele próprio distribuir aos mendigos.
Esses gestos, em todos os tempos em todos os povos, produziram sempre forte fascinação. Frei Henrique Soares logo se vê transformado em um herói em Cochim.
A veneração culmina, quando uma epidemia contagiosa irrompe na cidade. O antigo ministro da Casa da Suplicação está no seu período mais agudo de desvelo religioso. Não dorme, não come, não repousa, lida, noite e dia, com os moribundos e se encarrega de dar sepultura a todos os cadáveres.
As conversões, depois disso, fazem-se em massa. Erguem-se capelas nos quatro pontos da cidade.
Cabral anuncia seu retorno ao reino. Vai abrir as velas de suas naus. Frei Henrique acredita que faz-se mister novos frades, muitos outros frades, e que seria de boa política acompanhá-lo. Irá dar conta o rei dos trabalhos das missões e pedir o maior número de missionários possível, para maior colheita de almas, e engrandecimento de “sua Religião”.
A frota chega a Portugal em meados de 1501. Dom Manuel recebe jubilosamente o frade. Este quer logo voltar, com um novo grupo de franciscanos missionários. No entanto, o rei reivindica seus serviços na corte.
E as almas que vão ficar sem salvação, lá na outra banda do mundo?
D. Manoel corta a questão habilmente. Nomeia -lhe seu confessor e bispo de Ceuta. Nomeado bispo em 1505, não empunha imediatamente o báculo. Desempenha antes algumas missões diplomáticas, a pedido do Rei. Uma delas a de dar pêsames, em nome do monarca português, a D. Fernando de Aragão, pela morte de sua esposa, Da Isabel, a católica.
Em 1511, Frei Henrique Soares foi comissionado pelo Papa, para visitar as irmãs de Santa Clara, na Vila do Conde. Dois anos depois, é chamado a Roma por Leão X, para fazer o relatório jurídico do martírio de Gonçalo de Vaz, que morreu na África.
Falece aos 4 de dezembro de 1532, em Olivença, cidade localizada na circunscrição de sua diocese. Sepultam-no na igreja de Madalena, sua catedral.

Por mais ridícula e cediça que ela apareça, a verdade é que o destino efetivamente prega aos homens peças inimagináveis.. Até a celebridade é regida pelo fatalismo. O nada, às vezes, universaliza o nome, enquanto que o desforço sobre humano, resulta no mais completo vazio.
Frei Henrique Soares, como magistrado, chegou ao mais alto posto da carreira. Entretanto, por mais ilustre, se morresse desembargador, hoje certamente estaria fatalmente esquecido, como tantos outros de grande nomeada cujos nomes se perderam na história.
A sorte, porém, havia-o talhado para celebridade. Na magistratura não era possível. Fê-lo trocar a toga pelo hábito de frade. Era como o frade que o seu nome será via a se eternizar.
Grandes obras?
Ações impressionantes?
Não.
Em um episódio mínimo, no exercício de atividade que, para um sacerdote, é vulgaríssima, oficiar uma missa.
Na África, na Ásia, o nosso frade tem um papel de relevo extraordinário. Conquista almas. Vence muralhas de crenças pagãs, milenarmente cimentada sem raças milenares. É perseguido. É ferido. Transforma-se em mendigo. Em enfermeiro. Em médico. Em carregador de cadáveres. Tudo faz, enfim, que seja possível fazer-se, para tirar um nome da vulgaridade. Não obstante, nada disso impressionou o mundo. Nem a própria gente do Malabar se recorda de seu nome, ou de seus feitos.
Um nada, no entanto, uma simples missa, impeliu-o para a eternidade da história. Missas rezam os sacerdotes todos os dias, sem que daí lhes venha nada de notável.
Quis o destino, com seu poder providencial, tirar partido da própria banalidade.
Para que o fato mínimo constituísse um grande fato, escolhe o cenário virgem de uma terra até então sem história, os felizes primeiros momentos, dos primeiros contatos, entre dois povos inteiramente opostos.
E mais: para que aquela simples minucia não se perdesse, colocou a presenciá-la um cronista minudente como foi Pero Vaz de Caminha. Um escrivão que tudo soube ver, e que tudo quis narrar e registrar, naquela nossa alvorada histórica.
Frei Henrique Soares morreu pensando que sua maior glória teria sido ser bispo de Ceuta, ou, talvez missionário desbravador das Índias Orientais. No entanto, foi célebre por outra razão. Certamente ele próprio não terá compreendido a grandiosa significação daquela simples missa campal, que o destino o fez rezar nas praias brasileiras.
Ora dissera tantas missas…

 

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